Depoimentos

Mangueletter poética, agridoce, colagem (clonagem) popconcreta e antenada para o Planeta Mangue, escrita nos 459 anos da própria manguecéia tresloucada

Marcelo Pereira

A Chico Science, Raimundo Carrero e Mário Hélio

Overture - O Recife visto do mangue é um desafio. Conquistar o Recife é desbravar o mangue. Embrenhar-se na lama. Avançar sobre o estuário, onde o ciclo da vida se renova. Ou pior, é soterrar, sufocando vidas que sustém o ciclo de uma cidade "metade roubada do mar,/ metade à imaginação,/ pois é do sonho dos homens/ que uma cidade se inventa". Para descobrir o Recife visto do mangue é preciso navegar, sangrar, singrar suas veias, canais abertos ao ar livre, descendo o "rio escuro e triste/ de lama podre no fundo/ e baronesas na face,/ que vem, modorra e preguiça,/ parando pelas campinas/ e escorregando nos montes,/ até esse sítio claro,/ onde cobriram teu leito/ de pedra, ferro e cimento/ organizado em pontes./ Desde a Velha carcomida/ paisagem para detentos,/ que é por onde sempre passa esse povo marginal/ escuro e anfíbio."

Descer o Capibaribe com olhos de turista ou navegante é, para muitos recifenses ou recifencizados, contudo, uma aventura nunca sonhada ou enfrentada. Mas para quem já embarcou - barqueiros, remadores, caçadores de goiamum, caranguejos ou ostras- é uma descoberta fascinante e bela, ao mesmo tempo cruel, como a poesia que se escreve, com tintas desta mesma água e lama.

A realidade cotidiana das margens ribeirinhas do Planeta Mangue denunciam um outro Recife, mais cru, ingrato, abandonado à sorte. São as entranhas de uma cidade cartão postal, entrecortada de belezas naturais e outras moldadas pela arquitetura criativa dos recifenses, mas nem sempre defintiva, e alimentada pela alegria e hospitalidade decantada dos pernambucanos.

Há nessas entranhas uma poética do avesso, extraída da lama e da alma - uma dentro e fora da outra, ser e palavra - dos homens-caranguejos e mangueboys. Assim, quem se aventura ao passeio pelo Capibaribe sabe que "... tudo o que for do rio/ água, lama, caranguejos,/ os peixes, as baronesas/ e qualquer embarcação,/ está sempre e a todo instante/ lembrando o poeta João,/ que leva o rio consigo/ como um cego leva um cão".

Recife - Cidade Estuário - "Maternidade - Diversidade /- Salinidade/ Fertilidade - Produtividade/ Recife - Cidade - Estuário/ Recife - Cidade - És - Tu .../ Água, Salobra, Desova e criação/ Matéria Orgânica, troca e produção... // (O mangue injeta,/ abastece, alimenta, recarrega as baterias/ da Veneza esclerosada, / destituída, / depauperada,/ embrutecida) // Mangue - Manguetown/ Cidade complexo/ Caos portuário/ Berçário/Caos / Cidade estuário".

Recife - Cidade Provisória - "Cidade divisória, sol e lama,/ mar e mar,/ e pessoas bifurcadas. / no lixo sobre o podre, a borboleta,/ irmã do caranguejo, expõe as asas. // cidade provisória, sem projetos/ de um dia se fazer cristalizada,/ artesanato nunca o das abelhas/ melhor o formigueiro inacabado.// ferindo a prédios dois oceanos crespos/ a contender (um doce, outro salgado)/ no atoleiro do negro contra o verde/ por lâminas de espelho retalhado, // por onde desce, dama e prostituta,/ a se mirar por faces de sobrados,/ a provisória tecelã de ruas/ vendedora de história nas calçadas."

Recife - Cão Sem Plumas. "A cidade é passada pelo rio/ como uma rua/ é passada por um cachorro;/ uma fruta/ por uma espada.// O rio ora lembrava/ a língua mansa de um cão,/ ora o ventre triste de um cão,/ ora o outro rio/ de aquoso pano sujo/ dos olhos de um cão.// Aquele rio/ era como um cão em plumas./ Nada sabia da chuva azul,/ da fonte cor-de-rosa/ dá água do copo d'água,/ da água de cântaro,/ dos peixes de água,/ da brisa na água.// Sabia dos caranguejos/ de lodo e ferrugem./ Sabias da lama/ como uma mucosa./ Devia saber dos polvos./ Sabia seguramente/ da mulher febril que habitava as ostras.//...// Abre-se em flores/ pobres e negras/ como negros./ Abre-se numa flora/ suja e mais mendiga/ como são os mendigos negros./ Abre-se em mangues/ de folhas duras e crespos/ como um negro. //..// Entre a paisagem/ o rio fluía/ como uma espada de líquido espesso./ Como um cão/ humilde e espesso.// Entre a paisagem/ (fluía)/ de homens plantados na lama; de casas de lama/ plantadas em ilhas/ coaguladas na lama/ paisagens de anfíbios/ de lama e lama."

Retroceder para Avançar - Mas enquanto a terra brasilis ainda era virgem como suas matas e índias, convivia-se pacificamente, respeitando-se seu ciclo das águas. "O rio ao entrar no mangue/ Logo deixa de ser rio/ Para ser mangue somente/ E encher de mangue o vazio.// Com excessão da folhagem/ Verde, que ao sol se derrama,/ Embora tenha os pés negros/ Plantados dentro da lama.// O mangue, como um mar morto,/ recebe o rio e o encerra/ Entre seus lábios viscosos/ E as suas ilhas de terra.// ..// O rio ao sair do mangue/ (Depois que o mangue o repele)/ Calça sapatos de lama/ Veste de lama a pele. //...// Mas logo o rio encontra// De novo pedras e areias/ E escuta o mar que o convida/ Com algas, búzios e sereias.//..// Depressa vai se enxuagando/ Num banho de passarinho,/ E despregando a metade/ do mangue pelo caminho".

Quando vieram, então, os colonizadores, primeiro os portugueses e depois o holandeses e, principalmente os galegos dos países baixos, começaram a roubar do mar o mangue, para fazer com seus diques os cais e a domar a sinuosidade da águas com os aterros e canais. "Entre os mangues e pântanos, alimentados pelas águas dos rios Capibaribe e Beberibe cresceu o número de humildes habitações dos marítmos arranchados". "Cidade porto/ holandesa frequesia/ terra mangue antes foi/ alagado, chão incerto/ rompe um povo/ alastrado em lama/ singular tecedura/ costurada em feijão. E os do Recife criaram uma superstição: "Só há saída para o mangue", como estampou certa vez uma manchete de jornal.

Avançar Sempre -Foram-se os invasores de outrora, mas a invasão continuou através dos séculos, perdurando até hoje, com a expansão urbana, construção de shopping centers e edifícios, retificação de canais e abertura de novas perimetrais de Jaboatão a Olinda, passando pelo Recife, do Jordão à circunvizinhança da Ponte Limoeiro e outros arrabaldes. Uma opção civilizatória que optou por adensar a cidade ferindo a sua geografia natural e verticalizando-a, ao invés de buscar outros campos e colinas na região metropolitana, para onde, inclusive vão aqueles expelidos das invasões de mangue, confinados em conjuntos habitacionais populares, ou aqueles que não suportam o caos urbano e procuram refúgio nos resquícios de área verde em Aldeia, Camaragibe.

E sempre que procuram uma saída do Recife para o mangue, soterrando o ecossistema natural da cidade-estuário, expelem como o cirurgião um tumor aqueles que nele habitam: os homens-caranguejos (de Josué de Castro - um cientista da fome) e toda a flora (rhisoflora mangle) e toda a fauna (aratus, chiés, caranguejos, guaiamuns, guajás, mexilhões, unhas-de-velho, sururus, ostras, tainhas entre outros mais). Não há cura, posto que há metástese os problemas.

Homens-caranguejos e suas tocas - E os expelidos são pessoas humildes como Simplício de Tal, que "sorria nas horas certas e fechava a cara nas horas devidas e bebia religiosamente convivia com Deus como quem nasce e acorda e sai vivendo gostava de futebol como se deve andava de ônibus e acordava com o apito da fábrica morava quem sabe lá onde Simplício morava ou se ocultava na rua das casas número das portas o fato é que era numa invasão por cima do mangue".

A sua toca: os mocambos "entulhados à beira do Capibaribe/ Na quarta pior cidade do mundo" "com o seu teto/ de palhas secas/ (onde) sobem paredes/ e o sujo chão/ de barro preto/ barro batido". "Onde o vento do mangue/ Vê, sobre as cégas águas// Meninos-caranguejos/ abrindo os olhos grandes/ Através das janelas/ De folhas e flandres". Formam "impressionantes esculturas de lama/ mangue mangue mangue mangue mangue mangue/ E a lama come o mocambo e no mocambo tem molambo/ E o molambo já voou, caiu lá no calçamento, bem no sol do meio-dia/ O carro passou por cima e o molambo ficou lá/ Molambo eu, molambo tu/ Molambo boa peça de pano pra se costurar mentira/ Molambo boa peça de pano pra se costurar miséria".

É por essas e outras que o poeta-engenheiro Joaquim Cardozo disse certa vez: "Recife,/ ao clamor desta hora noturna e mágica/ vejo-te morto, mutilado e grande,/ pregrado à cruz das novas avenidas/ e as longas e verdes da madrugada/ te acariciam." Não bastassem os versos de Recife Morto, Cardozo ainda declarou sobre a cidade: "Há muitos que nunca saíram daqui, mas que já abandonaram o Recife há muito tempo, pois concordaram com a destruição dos monumentos antigos, com a intensão de utilzar um urbanismo já obsoleto, de linhas retas e ruas largas. Sou da opinião que um homem não deve morar muitos anos na mesma cidade, como não deve viver muitos anos com a mesma mulher e, reciprocamente, a mulher com o mesmo homem".

Não são apenas os poetas e romancistas pernambucanos têm a alma impregnada de mangue e se alimentam da fertilidade da cidade-estuário. Desde 1991 vem-se processando uma renovação artistíca e estética que oxigenou as arterias culturais da cidade. Com suas antenas parabólicas enterradas na lama e sintonizada com a aldeia global pop, os mangueboys - caranguejos com cérebro - das bandas Chico Science & Nação Zumbi e Mundo Livre S/A plugaram a música pernambucana no cenário da música brasileira e internacional dos anos 90, dando uma nova linguagem para os ritmos regionais e enfocando complexidade urbana da metrópole.

Com o movimento mangue, despertou-se a atenção da mídia e abriram-se espaços para que emergisse um novo olhar sobre a cidade mangue, através do talento de jovens músicos, pintores e estilistas de moda que, sem ter um compromisso formal, de uma forma ou de outra terminam refletindo os anseios de uma geração que sente a necessidade de se inserir num processo de integração mais aberto e multiculturalista, sem abrir mão do desejo de resgatar ou revalorizar os valores que fazem parte do seu substrato cultural. Exemplos são as bandas Mestre Ambrósio, Querosene Jacaré, Cavalo do Cão, Alma em Água, Véio Mangaba, Coração Tribal, Jorge Cabeleira, Tonheta, Antúlio Madureira, entre tantos outros. E a resposta tem sido das mais positivas e animadoras. A repercussão da primeira turnê internacional de Chico Science & Nação Zumbi, os elogios da crítica para o seu trabalho e os premios obtidos por Mundo Livre S/A e, mais recentemente pela manguefashion do estilista Eduardo Ferreira, o primeiro vencedor do Phytoervas, mostra que neste caçuá ainda tem muitas surpresas.

Mesmo assim são poucos os que não homens-caranguejos a ter a coragem de conhecer o mangue por dentro, embrenhando-se nele, como Pissinho, o garoto personagem de O Saveiro do Inferno, do mangue-writer Sílvio Roberto de Oliveira. Com seus irmãos e a mãe, Pissinho luta "com as ratoeirtas de pegar goiamaum nos mangues cercados de capim barba-de-bode que crescia nos aterros em volta. Pissinho, o caçula, desde pequeno "sabia armar a arataca fieta pelos irmãos mais velhos e bem feita que pra tudo precisa de jeito e arte construída de lata de óleo aberta de um lado a tampa da própria lata presa com arame a uma cruz de madeira a uma fita de borracha de câmara-de-ar enlaçando a lata por baixo para dar pressão e a ponta da cruz era então enganchada na ponta do arame que ia dar na isca a armadilha colocada junto dos buracos e pronto: se a isca fosse boa de casca de laranja ou mesmo de folha de mangue, em pouco tempo haveria bicho preso rasqueando na lata, alvoroçado para sair".

Quem já pescou caranguejo ou goiamum no mangue deve se identificar com Pissinho em O Saveiro do Inferno, inspirado nos Autos da Barca do escritor português Gil Vicente. O garoto distrai-se enquanto toma conta da arataca, "porque era preciso vigiar que o mangue era cruzado de ladrões a toda hora eram os ladrões de ratoeiras", desenvolvendo uma pontaria impressionante com a baleadeira "e matava caranguejos a vinte metros mesmo dos pequenos sem falhar a gente só via de longe o casco azulado se espatifando no meio da lama com a bala de barro redondinha seca no sol zunindo certeira até lhe estoutrar nas costas". Quem já foi garoto de beira de rio sabe o prazer de uma aventura como essa ou então como a de andar com as jagadas feitas de troncos de bananeiras, como as que Pissinho fazia para "sair boiando empurrando com uma vara por entre os paus do mangue-seriba chegando aos portos das ilhas de lama pena que as ilhas de mangue não tinham coqueiros feito as que aparecia na televisão ou revistas que ele achava no lixo".

Mesmo sem viver estas aventuras, muitos já se deliciaram com os pratos feitos a base dos frutos do mangue, caranguejos e goiamuns (há quem diga gaiamuns ou ganhamuns) cevados, servidos fervidos na água e sal, com coentro e cebolinho ou com pirão ou, ainda molho de coco, tempero com os quais se fazem também as iguarias pernambucanas da mariscada, do sururu e da unha de velho. Deliciosos quitutes, de paladar inesquecíveis vindo de um mundo tão crespo e em decomposição. Quem explicar há de? Assim é a Ilha do Recife dos Navios. E tudo porque: "O rio está em nossa infância/ Tomávamos banho nele/ Hoje ele se banha em nós".

Marcelo Pereira, editor do Caderno C do Jornal do Commercio