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A proposta de extensão, para os companheiros e companheiras homossexuais, de benefícios previdenciários, apresentada pela Prefeitura do Recife é, certamente, motivo de potencial polêmica.

Antes de qualquer abordagem da questão, todavia, cabe transcrever matéria publicada no Diário de Pernambuco, de 24 de julho de 1951, ou seja, há 50 anos, com o sugestivo título de Coveiro da Família: "Na Câmara dos Deputados, Nelson Carneiro ocupou a tribuna, para defender-se das acusações recentes que lhe lançou o mons. Arruda Câmara, represente de Pernambuco, tachando-o de 'coveiro da família brasileira' face aos projetos por ele apresentados mexendo com a instituição da família: o reconhecimento dos filhos ilegítimos, a equiparação da companheira à esposa e, por último, a transformação dos desquitados em divorciados, se estiverem separados há cinco anos ou mais."

Dessa matéria é interessante observar que das propostas defendidas há cinqüenta anos, pelo deputado Nelson Carneiro, todas elas, décadas após, foram sucessivamente aprovadas.

O divórcio foi aprovado em 1977, o reconhecimento de filhos fora do casamento (o termo ilegítimo nem é mais admitido no meio jurídico) e a relação de companheirismo (hoje denominada união estável) foram reconhecidos pela Constituição Federal, artigos 226, § 2º e 227, §6º.

Apesar de aprovadas, o chão não se abriu, não caiu fogo dos céus, enfim o apocalipse não se abateu sobre a família e, por conseqüência, sobre nossa sociedade. Aliás, a instituição família parece ter fôlego para perdurar por muitos séculos.

Esta compreensão deve indicar, para todos que se envolverem na discussão e reflexão sobre o assunto, que se deve agir com cautela e moderação, à busca de um debate claro e sem subterfúgios.

Certamente, o primeiro aspecto que se deve enfrentar é o aspecto jurídico: É possível, sob a égide da Constituição Federal de 1988, estender ao companheiro homossexual o direito a pensão ou auxílio reclusão?

Cremos que sim. Neste sentido, é interessante perceber, preliminarmente, que esses são direitos previdenciários e não direitos de família. Não se está, aqui, discutindo se pessoas do mesmo sexo que mantêm um convívio duradouro, semelhante à união estável entre heterossexuais, são ou não são uma família. Discutimos, isto sim, se existe uma relação duradoura entre esses companheiros homossexuais, com a construção de projetos e necessidades em comum que acabam por impor a esses companheiros, da mesma forma que na união estável, uma relação de mútua dependência. É evidente que sim, e se um desses companheiros vem a falecer, sua renda fará falta à manutenção das despesas inerentes à existência do sobrevivente.

Este foi o entendimento do Ministério Público Federal, que ingressou com ação civil pública na Justiça Federal da 4ª Região e obteve liminar favorável da juíza Simone Barbisan, da 3ª Vara Previdenciária. Apresentado recurso pelo INSS ao TRF - 4ª Região, este Tribunal negou o pedido de suspensão da liminar concedida, motivando a elaboração da Instrução Normativa INSS n.º 25/2000, que previa e regulamentava a concessão dos benefícios previdenciários aos companheiros e companheiras homossexuais.

O Município do Recife tem a proposta de garantia de benefícios prevista no art. 30, II, do projeto de lei que institui o seu Sistema Previdenciário.

Em síntese, a garantia dos benefícios previdenciários para os relacionamentos homossexuais é permitida, e mais, é obrigatória em decorrência da Constituição Federal, já que o inciso V, do artigo 201, da CF, prevê, o direito à pensão por morte ao "cônjuge, companheiro ou dependente". Da mesma forma, o artigo 6º, c/c o artigo 5º, da CF, garante o direito à proteção da previdência à pessoa, sem fazer a proibição.

A doutrina constitucionalista ensina que os direitos e garantias fundamentais não podem ser interpretados restritivamente, exceto se existir um motivo de ordem pública que justifique a restrição de direitos.

Desta forma, se o artigo 6º, da CF, prevê o direito à "pessoa" e o artigo 201,V, garante ao "dependente", os poderes públicos (executivo, legislativo e judiciário) não podem interpretar a Constituição sem estender esse direito a todos que se encontram sob essa proteção da Carta Magna.

Também da Declaração Universal dos Direitos do Homem, artigos 1º e 25, e da Convenção Americana de Direitos Humanos, artigos 5, 7, 11 e 24, das quais o Brasil é signatário, garantem o direito.

Vencido o aspecto estritamente jurídico, devem ser observados os aspectos sociais que envolvem o tema. O Poder Público não pode mais ignorar que existem homossexuais e que essas pessoas, inúmeras vezes, mantém um convívio duradouro. Se não igual, no mínimo muito assemelhado à união estável entre heterossexuais e, igualmente, cuja morte de um dos companheiros homossexuais implica em graves privações para o companheiro sobrevivente.

Não prever essa garantia revestir-se-ia em grave injustiça e discriminação, visto que o servidor homossexual contribui na mesma proporção do servidor heterossexual e não faria jus à mesma proteção para os seus dependentes.

Com esta proposta, estamos dando nossa contribuição para que a Administração Pública não feche os olhos a essa realidade.

Voltando à matéria de 50 anos atrás, transcrita no início deste artigo, as propostas do deputado não foram imediatamente aprovadas. Isto provocou um custo social condenável, visto que o reconhecimento tardio de filhos "ilegítimos", da união estável e do divórcio provocaram sofrimento em muitos lares, mudando o destino de muitos que, após a morte dos pais e companheiros, foram lançados em situações de privações por não terem seus justos direitos reconhecidos. Não queremos que a história se repita.

Danilo Cabral
Secretário de Administração
Ricardo Souza
Coordenador do Grupo de Trabalho sobre Previdência