(Artigo publicado no Diario de Pernambuco em 02/11/2002)
No meio do caminho tem uma pedra. Ou no meio do caminho tinha uma pedra?
Sim, poeta, uma pedra metafórica. Ela estará sempre no passado ou no
presente - tem ou tinha? - nos versos do velho Drummond, cujos cem anos
estão sendo celebrados no Brasil com todas as honras merecidas.
Entretanto, a pedra do prefeito João Paulo, cuja gestão merece lenta,
longa e definitiva reflexão, ficou definitivamente no passado. Como no
poema. Refiro-me à pedra que pesava sobre os ombros da cidade e que foi
removida. Para o nosso alívio. É claro.
Esta pedra era - graças a Deus, era - a infeliz Vila dos Morcegos,
localizada embaixo da ponte de Limoeiro, símbolo da nossa tristeza e da
nossa desgraça, reunindo famílias excluídas pelo perverso sistema
neoliberal, vivendo entre a lama e o luto, gemendo e chorando neste vale
de lágrimas, conforme diz a Salve Rainha. Vivendo? Que verbo é este que
me atormenta? Nada disso. Vegetando. Dominadas pela humilhação e pela
indignidade, elas tinham como teto o cimento armado e como chão a água
enlameada, quase sepultura.
Munido de vontade política e de notável sentimento humano, João Paulo
decidiu retirar aquelas pessoas naufragadas na derrota e ofereceu-lhes a
vitória. Isto é, em plena semana do seu aniversário, deu de presente
moradias dignas aos pobres e mais uma verba para que aliviem as dores.
Seguramente, todo governante não pode - sob qualquer argumento -
permitir a fome e o frio do povo. Deve lutar para impedir o sofrimento.
A qualquer custo.
As famílias que eram humilhadas na ponte de Limoeiro não precisam - nem
devem - mais repetir o trágico e inquietante verso de Carlos Drummond de
Andrade: E agora, José? Estão sendo reintegradas à vida, sem necessidade
da frase atormentadora de um dos seus integrantes: "Eu sou a terceira
pessoa depois de ninguém". Ao ouvi-la no vídeo das meninas da
Universidade Católica, bateu-me um pesar incrível. Não podia admitir -
sequer entre lágrimas e soluços - que um ser humano pudesse dizer algo
tão terrível. Por isso senti-me, eu próprio, a terceira pessoa depois de
ninguém.
Fiquei com os lábios mostrando os dentes de alegria quando fui informado
que aquela indignidade não ia continuar. O prefeito retirou as famílias
da Vila dos Morcegos e vai entregar a todos uma residência de qualidade,
onde poderão viver maridos e mulheres, filhos e filhas que não mais
ficarão presas em redes - redes ou reles? - enquanto as águas fétidas
não baixam. Prisioneiras da miséria humana que se abateu, muito
fortemente, sobre o Brasil, enquanto as autoridades fartas negociavam
com o Fundo Monetário Internacional - o FMI ou FIM. Tudo de acordo com o
freguês. Não estou dizendo que não se negocie. Mas não precisa exagerar.
Ou seja: de joelhos e com as mãos postas. Gesto semelhante a esse só
diante de Deus.
Para comemorar os cem anos de Carlos Drummond de Andrade recitaremos
seus versos, repetiremos suas palavras, celebraremos seus versos, grande
e extraordinário poeta. Coincidentemente, nesta nossa heróica cidade do
Recife, o prefeito João Paulo faz aniversário - exatos 50% - e oferece
presentes de pedra e cal aos habitantes mais humildes, aqueles que
precisam de ajuda e que não podem estender as mãos nas ruas, nesse gesto
que humilha qualquer ser humano. Afinal de contas, a pedra de João Paulo
foi removida. E ele justifica plenamente sua iluminada eleição.
Escritor
|