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V Festival Recife do Teatro Nacional - Avaliação

( Silvana Garcia - crítica teatral )

Contrariando o que a tradição há muito nos ensina - de que o riso castiga os costumes - Lessing diz-nos que "a utilidade da comédia reside no próprio ato de rir, no exercício de nossa faculdade de apontar o ridículo" e que "o cômico não cura o doente, mas sim fortifica a saúde de quem se porta bem".

Nada mais apropriado para os dias de hoje, pois precisamos mais do que nunca do riso restaurador, do riso cúmplice que nos deixa tomar distância da feia realidade e, vendo-a como de fato é pelo filtro do cômico, permite-nos a catarse de transformá-la ridículo.

Ao rir, tentamos vencer a morte, impomos a cidadania sobre o vício e, bastante oportuno neste momento, reafirmamos nosso direito de sonhar a utopia.

Logo, eleger a comédia como tema privilegiado de um fórum como este V Festival Recife do Teatro Nacional é louvar o teatro em sua mais genuína essência: a celebração da vida, da fraternidade cúmplice e crítica entre homens decentes.

Este é de imediato o primeiro motivo para saudar o evento que ora encerramos com este exercício crítico: a idéia de ter um centro temático - a comédia - que organiza em torno de si eventos e debates. Com essa escolha, também operamos uma ação de resgate de um gênero relegado pela mesma tradição aos porões dos gêneros ditos nobres.

Na extensão do acerto, mencionamos a excelente escolha de Barreto Junior como homenageado do encontro e a oportuna edição do livro de Alexandre Figueirôa, Barreto Junior, O Rei da Chanchada. Evidencia-se aqui o empenho de ressaltar o riso pelo simples mérito de existir. Não por acaso Barreto Junior soma sua voz à de Lessing quando também valoriza o sentido solar do cômico, a intenção de apenas divertir e, assim, melhorar o mundo.

A este lançamento, somaram-se outros dois, também vinculados ao tema: Neyde Veneziano com A Cena de Dario Fo: O Exercício da Imaginação, e O Riso em Cena, organizado pelo jornalista Valmir Santos, sobre os dez anos de existência do grupo Parlapatões, Patifes & Paspalhões. Em um país que edita tão pouco e menos ainda sobre teatro, essa triple presença editorial merece nosso mais caloroso aplauso.

A realização do Seminário "Configurações da Comédia" acrescenta-se às boas idéias deste encontro, perfeitamente adequado à proposta geral. Durante três dias, com as exposições estimulantes de Neyde Veneziano, Cleise Mendes, Vilma Arêas, Alexandre Figueirôa, Luis Reis, João Denys, Jefferson Del Rios e Antonio Cadengue, pudemos dedicar-nos a pensar a comédia e todos os outros temas e motivos a ela atrelados, tanto em seus aspectos mais gerais, de ordem ética e estética, quanto no estudo dos casos aos quais vinculam-se as pesquisas dos especialistas presentes. A lamentar apenas uma freqüência relativamente baixa de público - o que em absoluto não o desqualifica como platéia atenta e interessada.

Na seqüência dos eventos e insufladas pelo mesmo espírito, aconteceram as oficinas de atuação e crítica. Foram três modalidades distintas de prática: a da comédia musical, especialidade consagrada nos livros e nos dedicados anos de docência de Neyde Veneziano; a linguagem do cômico no exercício do ator sobre a máscara de Scapino, oferecida por Daniel Herz, e a reflexão sustentada pelas entrevistas com atores realizadas por Jefferson Del Rios.

Deste conjunto de atividades, sobre os quais incidem os melhores elogios, restaria como sugestão a idéia de ampliar-lhe as possibilidades de ressonância, propiciando aos participantes momentos de integração ou de atividades conjuntas. Com o mesmo intuito, teria valido a pena investir na extensão do evento em homenagem a Barreto Junior - amplificando deste modo o gesto de resgate e difusão - com, por exemplo, a realização de um ciclo de leitura das peças mais significativas do repertório do grande ator. Com isso, também aumentaria a participação no Festival dos profissionais de teatro da cidade.

O próximo item de nossa avaliação é a programação de espetáculos. Foram dez espetáculos, distribuídos da seguinte maneira, de acordo com seu lugar de origem: cinco espetáculos vindos de São Paulo, um do Rio de Janeiro, um do Pará, um do Ceará, um da Paraíba e um daqui do Recife. Foram espetáculos de naturezas diversas, mas supõe-se na seleção uma intenção clara de pautar-se por um critério de qualidade (espetáculos premiados ou sucessos de crítica).

Observando a programação por outro ângulo, poderíamos ensaiar agrupamentos segundo aspectos dominantes de cada realização - sem que tal exclua por princípio a presença de outros traços significativos. Teríamos assim, do meu ponto de vista, três espetáculos cuja principal tônica seria a pesquisa de linguagem como característica do coletivo. Estariam neste segmento os Parlapatões, os Pia Fraus e o elenco do Amok Teatro. São pesquisas de teores distintos, mas que resultam em produtos de forte contaminação grotesca: o grotesco da melhor tradição do cômico popular, investigada pelos patifes-bufões desde suas origens de perambulação clownesca pelas ruas do centro de São Paulo; o grotesco de feição noturna explorada pelo grupo carioca, e o grotesto festivo dos objetos animados dos bonequeiros Pia Fraus.

Um outro conjunto, também um trio, estaria constituído por aqueles espetáculos que têm na base um texto consagrado da moderna literatura dramática. Seria o caso de Um bonde chamado desejo, de Tennessee Williams, sob a direção de Cibele Forjaz; de O arquiteto e o imperador da Assíria, dirigido por Carlos Carvalho, e de Quando despertamos, estávamos mortos, de Ibsen, dirigido por Eliézer Rolim. Todos os três textos foram adaptados por seus criadores cênicos e têm em comum, de imediato, o fato de oferecerem à platéia motivos de reflexão sobre os diferentes modos de atualização dessa dramaturgia importante.

Um terceiro agrupamento seria o de dois espetáculos cujo primeiro mérito, a meu ver, é o de trazer ao palco textos de autores brasileiros contemporâneos: Alcides Nogueira, de Pólvora e Poesia, e Oswaldo Barreto, de Vaqueiros. Um do sudeste, outro do nordeste: interessantes exemplos, um de dramaturgia cosmopolita, com referências culturais sofisticadas; o de vigor juvenil e aparentado por semelhança à tradição dos musicais da contracultura dos anos 60-70: Paixão Barata e Madalenas.

Sobre essa programação, poderíamos afirmar que tem o mérito de trazer-nos produtos diversificados da principal produção dos estados representados. Podemos mesmo justificar a maior presença de representantes da produção paulista afirmando que, certamente, proporcionalmente, encontra-se aí o segmento mais gordo do total produzido no país. Também poderíamos entender a justificativa de que não é necessária a representatividade paritária: isso, em si mesma, não constitui um critério, de fato. Logo, creio que, embora esteja mais exposto às críticas, é correto que a organização do Festival assuma tratar-se de uma programação cujo principal objetivo é oferecer ao público pernambucano uma agenda de espetáculos de qualidade, com bons exemplos da produção nacional, independente do lugar de origem da produção.

Teríamos a observar ainda, na programação deste ano, justamente a falta de afinação com o tema do Festival. Em suma: foi um Festival centrado na comédia que, a rigor, teve apenas uma comédia em seu repertório. Na confortável posição de quem está avaliando de fora e a posteriori, diria que duas medidas poderiam ter evitado esse vácuo: pensar com a necessária antecipação o tema do Festival e investir em uma maior integração entre os organizadores e o grupo de curadores, tanto internos quanto externos. Talvez valesse a pena rever os modos de trabalho com os curadores, visando a ganhar flexibilidade no processo de seleção das peças. Se assim fosse, poderíamos ter contado com o espetáculo de Daniel Herz com a Companhia Atores de Laura, As artimanhas de Scapino, um sucesso carioca de crítica e público, que teria dado maior sentido e ressonância à presença do encenador entre nós.

No que concerne ao restante da programação, só posso louvar a iniciativa de introduzir neste ano a Mostra Paralela de Teatro de Rua. Surpreendeu-me a quantidade de grupos que estão hoje transitando pela periferia do Recife e creio que, com a inserção da Mostra, o Festival ganha duplamente: abre para os bairros uma extensão do evento - uma extensão viva, pulsante, de comunicação direta com um público que habitualmente não freqüenta as salas de espetáculo -, ao mesmo tempo em que oferece aos grupos maior visibilidade. O Festival, com essa iniciativa, antecipa o que acredito seja necessário acontecer: um maior investimento na formação e no desenvolvimento do trabalho desses artistas. (A excelência também deve alcançar as ruas).

Ainda sobre a programação, gostaria de registrar mais dois votos de louvor, destacando o bom oportunismo do evento ao associar-se em primeiro lugar à reinauguração do Teatro Santa Isabel, na comovente festividade de abertura; em segundo lugar, pela incorporação ao programa da palestra do encenador Jean-Paul Wenzel e da cenógrafa Catherine Calixte. Foi um valioso exemplo de criadores cuja lucidez em relação ao próprio trabalho mereceria da parte de nossos artistas uma séria reflexão, ainda mais nestes tempos de tanto diletantismo inconseqüente.

Como contrapartida aos merecidos elogios que fiz até agora, ofereço dois aspectos à consideração, visando ao aperfeiçoamento do encontro. Pensando que o Festival tem um caráter que é também, ou essencialmente, pedagógico - qual seja, propiciar ao público a possibilidade de ampliar seu conhecimento sobre a linguagem teatral não só por meio da assistência aos espetáculos, mas também pelo debate crítico -, gostaria de sugerir que se preservasse no programa do evento um espaço para as leituras críticas dos espetáculos. Trata-se não de realizar "debates após os espetáculos", fórmula a meu ver inócua e dispersiva, mas de oferecer, à maneira como foi feito no evento do ano passado, um momento para que os interessados pudessem, no contato com especialistas, exercitar sua capacidade de apreensão crítica das obras apresentadas.

O segundo aspecto concerne à produção de material impresso sobre o festival: o programa oferecido ao público é falho e não corresponde nem ao esforço dos realizadores nem à importância que teve o evento. Das ausências, destacaria, em primeiro lugar, a falta de indicação do grupo de curadores da programação de espetáculos: são profissionais e os principais responsáveis pela seleção das peças; logo, temos o direito de, para o bem ou para o mal, vê-los nomeados no elenco dos organizadores do evento. Igualmente, falta-nos ali a relação de todos os demais envolvidos na realização do evento. Um programa, gostaria de insistir, é um documento, como tal registro importante que constitui história e memória. (Ainda mais em nossas mãos, nós, que reclamamos que o país não tem memória e que, neste momento, somos responsáveis por escrever esta história).

Deveriam constar ainda do programa os nomes dos participantes do Seminário, bem como a organização temática das mesas. A César o que é de César.

Por fim, também seria conveniente a inclusão de textos dos organizadores. Trata-se de um Festival que pretende ter um conceito e conta com profissionais qualificados em sua organização: nada mais compatível do que comunicar com clareza, ao público, critérios, objetivos e escolhas que marcaram o processo de realização do evento.

Para concluir, faço um pequeno resumo das minhas observações, dizendo que reconheço - e não estou sozinha em minha conclusão - que o Festival de Recife ocupa hoje um espaço já reconhecido no conjunto dos mais importantes festivais nacionais de teatro. Se há ainda necessidade de melhor definição de alguns de seus delineamentos, no conjunto trata-se de um Festival de valor não apenas pelas intenções que o animam mas, principalmente, porque é realizado com determinação, disposição de se rever e acertar. Entendo, por minhas observações acumuladas nestes dois últimos anos, que o Festival caminha na direção de ser uma mostra de alto nível, primando pela qualidade e não pela quantidade. Aqui destaco o fato de que, embora premido por conjunturas econômicas, o formato mais concentrado do Festival talvez seja o melhor formato (desde que invista em maior número de apresentação de cada espetáculo, principalmente aqueles que exigem platéias de número reduzido de espectadores). Um formato mais enxuto obrigará necessariamente a uma afinação de critérios seletivos, diminuindo a margem de erro na escolha dos espetáculos. Conseqüentemente, a noção mais ou menos genérica de "qualidade" deverá sofrer um ajuste, objetivando-se com a explicitação de critérios.

Ainda assim, a programação do Festival será sempre uma opção de risco. Dificilmente poder-se-á confiná-la a um patamar de qualidade garantida (o que em absoluto não significa que valha "qualquer coisa").

A heterogeneidade, algo salutar, acarretará também a irregularidade. (Sim, creio que a programação deste ano foi irregular). Cabe pensar os motivos do desconcerto. Produz-se diferentemente nos quatro cantos do Brasil e isto não apenas concerne às condições objetivas (técnicas, financeiras) mas também ao domínio da linguagem (Por isso é tão esclarecedor poder observar as diferenças).

O importante é fixar claramente os objetivos do evento. Às vezes as diferenças são sutis: quais os espetáculos (ou que teatro) interessam à cidade, ao invés de buscar o que de mais interessante cada região produziu. Ou seja, queremos que o Festival contribua para implementar a produção local ou interessa-nos uma visão panorâmica do que acontece no Brasil? (Eu torço pela primeira hipótese). No mais, com o passar do tempo, e estabelecidos os interlocutores adequados, o mecanismo se ajustará naturalmente.

Um último aspecto a apontar: o mesmo cuidado dispensado com a seleção dos espetáculos, deve-se dedicar à preservação e fomento de seu caráter pedagógico.

Não só o público mas também os produtores de teatro da cidade devem ter o Festival como um evento de referência. Arte se aprende na interação dos exercícios de ver, fazer e refletir. Nesse sentido, o Festival é uma oportunidade preciosa para todos os que amam o teatro: os que vêem e os que fazem. Esse princípio deveria constar, a meu ver, da reflexão que leve à definição de objetivos e critérios.

No mais, gostaria apenas de reafirmar minha satisfação de ver realizada - e realizada com louvor e distinção - mais esta versão do Festival - um Festival que dá mostras visíveis de amadurecimento - e cumprimentar a todos que dele participaram - no palco nos bastidores e na platéia -, e que foram seu motivo de ser.

Comprimento com destaque a Prefeitura do Recife, na presença de seu secretário João Roberto Peixe, que teve a sensibilidade e a sabedoria de manter a realização deste importante encontro.



Recife, 24 de novembro de 2002