IMPRIMIR

PRIMEIRAS HISTÓRIAS

O mapa é uma representação. Nele sintetizamos informações, procuramos visualizar aspectos da realidade. Entre o Recife do século XVI, tempo do início da ocupação portuguesa, e o Recife onde vivemos existem diferenças imensas. Algumas estão evidenciadas na análise comparativa dos mapas: são áreas de ocupação distintas, concentradas em espaços diversos que se modificaram no correr dos anos, à medida que as relações com a natureza se alteraram. As comunidades humanas transformam-se com o passar do tempo, mas há permanências. Há um ritmo nessas mudanças, ora lento, ora veloz. Na construção de cada história, de cada pessoa ou lugar, há um diálogo constante entre o passado e o presente, diálogo muitas vezes silencioso, difícil de ser entendido, porém de uma importância fundamental para o conhecimento/reconhecimento de cada história, povoada de gestos, símbolos, desejos, recordações, esperanças, mistérios.

O Recife é, atualmente, uma grande metrópole, convivendo com a velocidade e a sofisticação das tecnologias mais do que modernas. Nas suas ruas circulam milhares de automóveis apressados. Os ruídos atravessam os dias e as noites, parece que a cidade não descansa, não tem tempo para contemplar a sua própria imagem. Mais de um milhão de pessoas vivem e sobrevivem, produzem riquezas, trocam experiências, vivenciam suas afetividades, disputam espaços de poder e de cidadania. São muitas as diferenças entre as pessoas, entre os lugares, retratando a heterogeneidade econômica e cultural tão presente no nosso cotidiano. Apesar de toda transformação trazida pela modernização, há muita coisa que ainda resiste, há olhares presos nas imagens dos tempos de outrora, há memórias que temem o futuro como uma grande e destrutiva ameaça.

O contar e o fazer

A cidade é, na verdade, a grande moradia dos homens, ponto de encontro e desencontro dos seus sonhos e dos seus desejos, cenário principal dos tempos modernos. O Recife tem sua singularidade, experiências históricas próprias, que lhe dão uma identidade, que o fazem diferente. Mas tem também hábitos e comportamentos que a caracterizam como uma cidade moderna, com suas dificuldades e contradições sociais. A história deve ser analisada nessa dimensão da multiplicidade e a cidade se alimenta dessa capacidade de invenção cotidiana, em muitos aspectos imprevisível, dos seus habitantes.

Nem tudo pode ser esclarecido ou contado, descoberto ou revelado. Assim, a construção da história lida com limites, defronta-se com as armadilhas da memória, com as tantas perdas materiais que evitam que certos acontecimentos sejam registrados, com os conflitos políticos que criam versões que se chocam, confundindo e provocando debates. É sempre recolocada a questão: para que serve a história? Ou outra, talvez ainda mais complexa: qual é a história verdadeira? Contar a história é enfrentar dúvidas, é não perder de vista que há uma relação entre o que se conta e o que se faz. No diálogo entre o passado e o presente, entram também as expectativas que temos diante do futuro. As perguntas que o historiador faz e a história que ele escreve estão articuladas com as questões do tempo no qual vive, não são neutras, mas marcadas pela sua época e pela sua subjetividade.

Nas histórias que escutamos, desde os nossos primeiros anos de vida, há sempre uma preocupação com a origem das coisas, mesmo quando não conseguimos datá-la com precisão. Não seria diferente com relação às origens do Recife, mas isso não impede que façamos esse mergulho no passado. É importante situar-se no tempo, mesmo que haja incertezas, mesmo sabendo que "tem horas antigas que ficaram muito mais perto do que outras em recente data", como escreve Guimarães Rosa, em Grande Sertão: veredas. Assim, poderemos seguir viagem, reconstruir lembranças, consultar fontes, fazer um desenho histórico do que foi o Recife no século XVI.

O vasto e o pequeno mundo

O século XVI vivenciou uma grande expectativa com relação a um novo mundo que surgia. A expansão marítima européia trouxe novidades atraentes, surpresas inesperadas. Não só aumentou a quantidade de riqueza que passou a circular por mares "nunca dantes navegados", mas mexeu com hábitos seculares, esclareceu enigmas, desfez medos, anunciou expectativas. Era preciso também viver, contar o que estava acontecendo, participar dessa aventura sedutora. Povos de culturas diferentes se aproximavam, mais do que isso, se chocavam. O vasto mundo que se formava era bem mais vasto do que seus corações. Eram tempos de conquista.

A chegada dos europeus

A colonização européia das terras americanas fez-se de maneira violenta, com poucos diálogos, muita ambição e extermínio dos mais fracos. Os que aqui habitavam tinham escassos recursos para resistir, as diferenças culturais eram imensas, a vontade de poder, mais ainda. Nunca as veias do continente americano ficaram tão expostas, tão abertas, parodiando o escritor Eduardo Galeano. A cruz e a espada tornaram-se os grandes símbolos desse grandioso empreendimento.

O que viria a ser chamado Brasil foi ocupado pelos portugueses, interessados em buscar ganhos materiais que lhes dessem um lugar privilegiado no continente europeu. Convivia-se com essa expectativa, sobretudo com o sonho dourado de descobrir e explorar minas de metais preciosos. Nem tudo ocorreu como se esperava. A grande riqueza que garantiria, inicialmente, os primeiros sucessos da colonização portuguesa foi a cana-de-açúcar e a capitania de Pernambuco, o lugar mais fecundo para sua produção. Fundaram-se engenhos com a ajuda, inclusive, de capitais holandeses. Uma doce riqueza, uma estrutura de produção sustentada na amargura do trabalho escravo, marca de uma sociedade que montou uma rígida hierarquia social.

O Recife aparece olhando para o mar, mas vizinho dos canaviais. Descrevendo o espaço físico no qual se assentou o Recife, diz Josué de Castro: "É essa planície constituída de ilhas, penínsulas, alagados, mangues e pauis, envolvidos pelos braços d'água dos rios que, rompendo passagem através da cinta sedimentar das colinas, se espraiam remansosos pela planície inundável. Foi nesses bancos de solo ainda mal consolidados - mistura ainda incerta de terra e de água - que nasceu e cresceu a cidade do Recife, chamada de cidade anfíbia, como Amsterdã e Veneza, porque assenta as massas de sua construção quase dentro de água, aparecendo numa perspectiva aérea, com seus diferentes bairros flutuando esquecidos à flor das águas". Um pequeno mundo, um povoado, não muito distante de Olinda, cerca de uma légua, Olinda que era o lugar central do poder e da riqueza da capitania de Pernambuco, governada, nos primeiros tempos, pelo dinâmico Duarte Coelho. A mais antiga referência sobre o Recife é de 1537, no chamado Foral de Olinda, no qual está determinado o estatuto jurídico da propriedade da terra. As regras de apropriação da terra dependiam da doação donatarial. Povoado onde viviam pescadores, marinheiros e mercadores que por aqui passavam, em torno de uma ermida de São Pedro Gonçalves, chamada de Corpo Santo, fazia parte do território de Olinda até a Carta Régia de 19 de novembro de 1709. Denis Bernardes observa que "primitivamente, a povoação do Recife compreende a área propriamente portuária, o atualmente chamado Recife Velho", mas faz uma importante ressalva afirmando que "o território da futura cidade, fora da sua faixa portuária, já era objeto de menção e cedo passa a ser objeto de posse e uso...". Registre-se que a função portuária foi a de maior dinamismo e "superaria muitas das condições desfavoráveis ao estabelecimento humano em uma faixa de areia que por certos aspectos lhe era adversa", acrescenta Bernardes.

Uma terra feita de açúcar

O olhar do presente sobre esse pequeno povoado pode despertar sonhos de que nele se vivia como no paraíso. As dificuldades que a cidade enfrenta na sua relação desequilibrada, atualmente, com a natureza, alimentam esses desejos de retorno. Criam-se fantasias, resultado das carências de cada época. As dificuldades existiam, não eram poucas. Apesar do mundo de água, dos rios, dos manguezais com seus caranguejos e mariscos, ressentia-se da falta de água potável, de um abastecimento alimentar mais contínuo e até mesmo de madeira para ser utilizada como lenha.

As condições do solo influenciavam na falta de produtos agrícolas, mas o Recife cresceria a partir das suas atividades mercantis, o seu porto lhe garantiria sua ligação com o vasto mundo, porta de saída da produção açucareira e de entrada de tantas outras mercadorias. Tornava-se um lugar de comércio. A prosperidade do porto estava vinculada à boa situação inicial da capitania de Pernambuco. O movimento do porto, em 1584, era de cem navios e já se produzia em 1589, na capitania, cerca de 200 mil arrobas de açúcar.

Havia um sistema de segurança para evitar as invasões estrangeiras. Era grande a disputa pelas terras e mais ainda pelos produtos. Era época do mercantilismo, media-se a riqueza das nações pelo sucesso da sua balança comercial, pelo êxito das suas exportações. O Recife guardava, nos seus armazéns, caixas de açúcar, preciosa mercadoria, ambicionada pelos piratas que navegavam pelos mares, muitas vezes, com o consentimento e ajuda de grandes nações. Outra riqueza também atraía, era o pau-brasil, muito comum nas costas pernambucanas. Não faltavam, portanto, aventureiros dispostos a lutar e carregar seus navios com os bens das terras americanas. Os franceses, quando expulsos por Mem de Sá, estiveram no Recife em 1561, mas terminaram por ser derrotados, como foram os ingleses que em 1595 chegaram a ocupar o povoado por 30 dias.

Em 1578, Cristóvão de Barros defendia a necessidade de se construir uma fortaleza para proteger a barra do Recife. Segundo descrição de Josué de Castro, foi construído um sistema de fortins que, nas primeiras décadas do século XVII, tinha a seguinte estrutura: "o primeiro deles ficava no lado sul da entrada da barra, assentado sobre arrecifes, e fora cognominado de Forte da Laje ou Forte do Mar, sendo depois crismado pelo povo como Forte do Picão; o segundo, ficava em frente ao primeiro, assentado no areal do istmo, a 500 metros ao norte da povoação, e fora batizado como Forte de São Jorge; o terceiro ficava a 500 metros ao norte do segundo, no mesmo istmo, e chamava-se do Bom Jesus". O esquema de segurança que foi sendo montado pela metrópole portuguesa mostra a excelência do porto, com seus arrecifes, lugar estratégico para negócios, sendo já, no final do século XVI, o porto de maior movimento da América portuguesa.

A simples povoação foi-se transformando e se expandindo. As atividades comerciais ganhavam espaço e para isso certas benfeitorias e serviços eram precisos. Portugal fazia investimentos, organizava a administração, colocava funcionários, fiscalizava a circulação da riqueza. Cresciam as construções e a própria convivência com os chamados estrangeiros. Troca de hábitos, informações, moedas e mercadorias. Formava-se um núcleo urbano que estreitava, lentamente, seus laços com o mundo europeu. Quando os holandeses aqui aportaram, não encontraram mais o acanhado "Povo dos Arrecifes". Começam outros tempos, seguem-se outras histórias, com suas permanências e suas mudanças.


FECHAR

IMPRIMIR