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A CHEGADA DO SÉCULO XX

O Recife quer ser moderno

Os autores que discutem a modernidade fazem registros diferentes dos seus significados. As dimensões que teve o modernismo nas artes, a agitação cultural do final do século XIX e o início do século XX, a encantadora Belle Époque, mostram a busca de novas linguagens para traduzir as velozes mudanças trazidas pelas novas técnicas. Os tempos modernos ampliaram a diversidade, os projetos de dominação da natureza, as sutilezas que envolvem as relações de poder, as tramas sociais e políticas. Instauraram o culto, às vezes cego, ao progresso.

A idéia de revolucionar o mundo e de aumentar a capacidade do homem de compreender e compreender-se criaram cenários para consolidação de um modo de fazer e representar a História, antes inimaginável. Mas nem tudo foi encanto ou mesmo concretização dos sonhos e das utopias. São os contratempos que nos fazem questionar o que foi a modernidade, até onde o apagar das tradições e a fragmentação da memória contribuíram para a crise do mundo contemporâneo e as tensas relações entre o antigo e o moderno.

O historiador leva para o passado as suas inquietações cotidianas. O passado não é algo petrificado. Quando nos voltamos para a década de 20 no Recife, não podemos fugir da sua especificidade, para que esse diálogo entre os tempos históricos se aprofunde. Aquilo que provocava um forte impacto pela sua novidade, pelos seus ares de moderno, tinha um outro contexto, outras representações, outro imaginário. O novo e o velho eram mais nítidos, a referência à tradição era constante, a memória não estava tão fragmentada, o cotidiano da cidade não sofria tão velozes invasões, convivia com ansiedades bem diferentes das nossas.

Modernismos e modernização

As duas primeiras décadas do século XX conviveram com experiências de modernização importantes, sintonizadas com as mudanças que ocorreriam com a expansão das práticas capitalistas. O Recife não ficou ausente dessas mudanças. O prefeito Eduardo Martins, nomeado pelo governador Sigismundo Gonçalves, em 1904, tomou medidas chamadas disciplinadoras que causaram reações negativas da população, uma delas referente à coleta de lixo. O governo de Dantas Barreto, na década de 10, trouxe proposta de modernização na administração do Estado, uma reorganização do núcleo de poder dominante, antes subordinado às ordens políticas de Rosa e Silva. O seu governo buscou articulações com os trabalhadores urbanos e adotou um discurso salvacionista. Além disso, destacaram-se o plano do engenheiro Saturnino de Brito e as obras feitas para sua concretização, marcantes para a estrutura urbana do Recife.

Na década de 20, o Recife tinha uma importância regional destacada, um setor de serviços significativo, apesar das constantes crises que afetavam a economia pernambucana decorrentes da prevalência dos interesses da agroindústria açucareira. A sua população teve um crescimento expressivo: dos 113 mil habitantes, em 1900, passou para aproximadamente 239 mil, em 1920. Com uma história que atravessava períodos distintos, possuía desenhos urbanos diferenciados, memórias solenes de tantas lutas e dificuldades. Os seus atores celebravam e recordavam feitos e, no imaginário, a forte presença do passado dava margem a múltiplas interpretações.

Além disso, outros sinais indicativos das mudanças que ocorriam na cidade eram os debates sobre a modernização. A reorganização dos serviços de higiene e saúde públicas ganhou uma dinâmica importante, pois mexia com o cotidiano e os costumes da cidade. Envolvia reformas urbanas que provocavam polêmicas na população e teve sua época áurea no governo de Sérgio Loreto (1922-1926). Comandada por Amaury de Medeiros, a reformulação dos serviços de higiene e saúde se propunha a reduzir a caótica situação em que se encontravam, fortalecendo uma ação, considerada pelos seus autores como civilizadora, e marcada pelo saber científico. O doente mental, antes confundido com um marginal comum, passa a ter um tratamento diferenciado. Falava-se em eliminar as feições coloniais e tropicais do Recife. As palavras de ordem eram "urbanizar, civilizar e modernizar".

Houve uma mobilização destacada nesse sentido, incentivando-se a construção de casas populares, a erradicação dos mocambos, os aterros dos mangues, a ampliação dos serviços de luz elétrica, a abertura de ruas e avenidas. Foi da época do governo de Sérgio Loreto o polêmico processo de urbanização da praia de Boa Viagem. A cidade expandia-se para outras áreas, buscando novas formas de lazer, seguindo modelos externos. O noticiário da imprensa da época registrava esses acontecimentos, acompanhando a remodelação do cenário urbano e as perplexidades que trazia. As elites governantes procuravam efetivar esse desejo de modernização, tão presente nas grandes cidades da época, redimensionando os espaços urbanos, multiplicando os lugares possíveis para a expansão do capital. Nem todos aceitavam ou usufruíam dos privilégios das reformas urbanas. Essa é a dinâmica da formação das cidades, seus projetos de modernização não são, apenas, "civilizatórios" ou "urbanísticos", mas expressam conflitos que se desenvolvem nos seus cotidianos, vinculados também a uma luta dos desfavorecidos por melhores condições de vida e trabalho. A cidade é o cenário maior dessas lutas.

Os debates e as reformulações não estavam restritos às reformas urbanas. As repercussões da Semana de Arte Moderna, em São Paulo, em 1922, provocaram os intelectuais pernambucanos da época. Gilberto Freyre estava voltando dos seus estudos nos Estados Unidos e começava a ter uma liderança significativa no meio recifense. Aliás, ele já escrevia artigos polêmicos no Diario de Pernambuco, desde 1918. Em 1925, numa edição especial de comemoração do centenário do mesmo jornal, Freyre coordenou a publicação do Livro do Nordeste, com ensaios nas mais diversas áreas de pesquisa feitos por intelectuais nordestinos. Em 1926, articulou o Congresso Regionalista, "tradicionalista e a seu modo modernista", de onde se afirma haver saído o famoso Manifesto Regionalista, fato amplamente contestado por Joaquim Inojosa. Posteriormente, com Casa-grande & senzala, Sobrados e mucambos, Região e tradição, Gilberto Freyre iria desenvolver uma vasta obra renovadora para a sociologia produzida no Brasil, marcada pela polêmica ou pelo elogio fácil.

Na década de 20, antes de escrever suas obras mais destacadas, Freyre caminhava por trilhas realmente provocativas. Não se aliava àqueles que se encantavam, sem crítica, com a modernidade, ao contrário, colocava limites e censuras aos desejos de modernização, enfatizando o valor das tradições, alimentando um saudosismo dos outros tempos do Recife. Considerava-se, no entanto, a seu modo, um modernista. Estava atualizado com as mudanças ocorridas na Europa e nos Estados Unidos e as divulgava. Freyre deu grande alento ao debate intelectual da época e sua obra tem inegável valor para se entender a formação da sociedade brasileira.

Joaquim Inojosa representou o contraponto. Incorporou-se, sem maiores dúvidas, ao discurso modernista de 1922 e se considerou seu mais fiel representante no Nordeste. Procurou divulgá-lo no Recife e conseguiu muitos adeptos e espaço na imprensa. As suas polêmicas ficaram famosas. Deixou registros amplos da sua trajetória modernista e das discussões com seus opositores, em três volumes, fartamente documentados, intitulados O movimento modernista em Pernambuco. Inojosa manteve vários contatos com os intelectuais de outros Estados ligados ao modernismo, introduzindo suas publicações no meio da intelectualidade recifense. Escreveu em órgãos importantes da imprensa da época como A Pilhéria, o Jornal do Commercio e fundou a revista Mauricéa. Teve no poeta Austro Costa um dos companheiros mais próximos, na sua cruzada modernista.

A modernidade e o modernismo não propiciavam discussões que abrangessem parcela significativa da população. Tratava-se de idéias de circulação restrita, patrimônio das elites intelectuais e políticas. Porém, o processo de modernização dos serviços públicos atingia mais de perto seu cotidiano, provocava reações mais amplas, envolvia mais pessoas. Sinais de que as idéias modernas estavam circulando, penetravam nos costumes enraizados, mexiam com as tradições, estavam presentes na própria imprensa, nos jornais e nas revistas. Alguns desses sinais eram visíveis nas propagandas feitas na imprensa, cujo conteúdo registrava o uso do termo moderno para valorizar o produto. O moderno e o tradicional dialogavam, com seus signos e projetos.

Os movimentos do cotidiano

A década de 20 foi também cenário do ciclo de cinema no Recife, com destaque na produção cinematográfica brasileira. O Recife era conhecido como a Hollywood brasileira. Muitos filmes foram produzidos e alguns tornaram-se clássicos como A filha do advogado, Aitaré da praia, entre outros. O ciclo do Recife chegou a produzir 13 filmes em oitos anos, no período de 1923-31. A maior parte dos envolvidos na elaboração dos filmes estava na faixa de 20 a 25 anos. A partir da fundação da Aurora-Filme, Edson Chagas e Gentil Roiz desencadearam a produção de filmes, no Recife. Contaram os produtores com o entusiasmo de Joaquim Matos, proprietário do cine Royal que transformava cada exibição cinematográfica numa verdadeira festa. Apesar da falência da Aurora-Filme, em 1925, no seu projeto original, o ciclo continuou. Outras figuras se destacaram, como Jota Soares, Pedrosa da Fonseca, Pedro Salgado e tantos outros. O Recife convivia também com salas cinematográficas que exibiam com destaque as produções estrangeiras.

A cidade era atravessada pelas invenções modernas. Embora prevalecesse, na política, o interesse dos grandes proprietários, ligados à agroindústria açucareira, formava-se uma camada média, importante na discussão intelectual da época, com participação na imprensa. Aliás, era significativa a quantidade de jornais que circularam na década, com destaque para A Província, Diario de Pernambuco, Jornal do Commercio, Jornal Pequeno, Jornal do Recife. O mesmo ocorre com relação às revistas: Mauricéa, A Pilhéria, Revista do Norte, Revista da Raça, Revista de Pernambuco. Os jornais divulgavam, nas suas páginas, as sofisticações das novas que circulavam pela cidade: "Linguafono - máquina falante que ensina o inglês sem auxílio do mestre. Este método do professor americano Rosenthal tem dado os mais positivos resultados. Uma máquina com 26 discos e um excelente livro de explicações por 500$000".

Havia anúncios que mostravam a grande preocupação com a saúde. Um desses anúncios apresentava um remédio com poderes magistrais, chamado A Saúde da Mulher, que prometia ser o único seguro "para curar as flores brancas, as cólicas uterinas, as hemorragias, as suspensões, as regras dolorosas, a falta e escassez de regras, os incômodos da idade crítica, enfim, todas as doenças do útero e dos ovários". É interessante acrescentar a instalação de vários serviços urbanos que contribuem para modernizar a cidade, desde a segunda metade do século XIX: a inauguração da estrada de ferro Recife-Olinda-Beberibe (1870), serviços telegráficos (1873), serviço telefônico manual (1881), serviço de bondes elétricos (1914), nova rede de esgoto (1915), inauguração do tráfego aéreo Recife-Rio-Buenos Aires (1925), entre outros.

O Recife vivia dias de festa com a passagem de aviões. O primeiro a chegar foi o Portugal, pilotado por Sacadura Cabral e Gago Coutinho, no dia 5 de junho de 1922. Os aviadores portugueses atravessaram o Atlântico, feito registrado em monumento instalado na Praça 17, bairro de Santo Antônio. Mas a grande festa se deu com a chegada do Graf Zepellin, no dia 22 de maio de 1930.

As diversões públicas

Os espetáculos teatrais traziam artistas famosos. No ano de 1924, estiveram no Recife, entre outros, a Companhia de Lea Candini e a Companhia Velasco. A opereta Berenice, de Valdemar de Oliveira, estreou no dia 2 de fevereiro de 1926, terminando a exibição às 3 da madrugada. Além disso, a Rádio Clube passou a funcionar em 1924, localizando-se sua sede na Rua da Aurora. Os seus primeiros anunciantes foram o Café São Paulo, a Fratelli Vita (refrigerantes), a Telefunken e a Philips do Brasil. Cada anunciante pagava 30 mil réis por mês. Suficiente para financiar o salário de dois funcionários, o locutor e o servente.

O carnaval agitava sempre a cidade. Os blocos, com suas fantasias, os bailes no Jockey e no Internacional, o molha-molha, a brincadeira dos mascarados, os corsos nas ruas com os caminhões ornamentados, os namoros escondidos na folia, tanta diversão mudava o cotidiano. Era a festa onde todos se misturavam, cantando versos de canções populares ("Ai! Meu bem! Vamos brincar! Se você não tem dinheiro, não seja esse o embaraço: - Vamos cair no frevo! - Vamos fazer o passo! - Porque sem vintém é que se brinca bem"). O fascínio pelo carnaval, pelas tardes de regata no Capibaribe, pelo futebol, era comum. O famoso campo da Avenida Malaquias era palco de jogos emocionantes, muitas vezes com times de outros estados como o Flamengo, o Comercial de Ribeirão Preto e o São Cristóvão.

O flâneur de que fala Walter Benjamin não se depararia no Recife com as trilhas da modernidade parisiense, com as suas galerias, vitrines e grande agitação cultural das vanguardas artísticas e literárias. A sua trilha seria bem outra. Mas encontraria o desfilar da moda na Rua Nova, ouviria o som do jazz-band nas casas de chá, leria sobre o impacto das invenções modernas nas páginas d'A Pilhéria, encontraria os intelectuais discutindo na esquina da Lafayette, na rua do Imperador. Os cenários urbanos recifenses registravam sinais do moderno e das suas inquietações. Os bondes, os automóveis, o telefone modificavam as relações entre o público e o privado. Muitos reclamavam da velocidade dos automóveis e da intromissão do telefone nas vidas particulares. A convivência com a tradição não era pacífica, causava impactos, admiração, receios. A história das primeiras décadas republicanas não se resumiu às vozes autoritárias das chamadas oligarquias.

Não se deve esquecer que, antes da década de 20, greves operárias agitaram a cidade, como as de 1917 e 1919, paralisando atividades e criando confrontos políticos. As greves mostraram as insatisfações com as condições de vida existentes e tiveram participação marcante dos trabalhadores da Great Western. Em 1920 e 1921, novos movimentos de protestos tomaram conta da cidade. Houve grande mobilização contra a proposta tributária do governo, com articulações pluriclassistas, em que se destacou a polêmica atuação de Joaquim Pimenta, professor da Faculdade de Direito. Em 1922, fundava-se o Partido Comunista, com um núcleo de atuação marcante na política de resistência no Recife, com destaque para Cristiano Cordeiro. Todas essas tramas políticas revelam um aspecto importante da história da cidade: a luta social que teve sempre espaço nas suas ruas, apesar de todo autoritarismo existente. O discurso da modernização precisa alcançar e aprofundar a dimensão da cidadania, denunciando e reivindicando, na prática, uma sociedade mais justa.


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